domingo, 18 de julho de 2010

São Boaventura

O Doutor Seráfico

Coluna da teologia e filosofia católicas, sucedeu São Francisco de Assis na direção da Ordem dos Frades Menores, incentivou as cruzadas e foi grande amigo de Santo Tomás de Aquino

Plinio Maria Solimeo

João de Fidenza nasceu em 1221 na pequena cidade de Bagnoregio, na Toscana. Seus pais eram nobres, ricos e autênticos católicos. Aos quatro anos de idade foi acometido por grave doença. Sua mãe rezou a Francisco de Assis – que ainda vivia, e já era considerado por muitos como santo – e prometeu que, se por sua intercessão o menino sarasse, ela o consagraria à Ordem Franciscana.

Bagnoregio, cidade onde nasceu São Boaventura

O menino sarou. Alguns meses depois o Poverello de Assis visitou Bagnoregio, e foi-lhe apresentado o menino milagrosamente salvo por sua intercessão. Francisco pôs as mãos sobre sua cabeça, e assumido pelo espírito divino, anteviu toda sua grandeza futura. Exclamou então: “O buona ventura!”. Desta efusiva exclamação adquiriu o menino o nome de Boaventura, que tanta glória deu à Igreja.

Predestinado desde o berço para tornar-se um grande defensor da Igreja e sustentáculo da Ordem Franciscana, ele foi conatural com a virtude e os estudos: “Seus progressos foram tão rápidos, que seus mestres ficavam pasmos; sua inteligência tudo abarcava com uma facilidade extraordinária, e ele pôde, antes de se consagrar ao Senhor na vida religiosa, percorrer o círculo de conhecimentos ensinados nessa época, aprofundá-los e se tornar assim capaz de exercer sem atraso os empregos que lhe quisessem confiar”.(1)

Estudou nas mais célebres universidades da Itália, não perdeu sua inocência nem deixou de progredir sempre na virtude.

Em Paris, aluno do “Dr. Irrefutável”

Aos 17 anos, quis cumprir o voto materno e pediu admissão nos franciscanos. Pouco depois de sua profissão religiosa, vendo seus superiores o talento extraordinário que ele tinha para os estudos, enviaram-no para continuá-los na Universidade de Paris, a mais renomada do mundo católico. Lá teve como professor o também franciscano Alexandre de Hales, que brilhava na Cidade Luz com o título de Doutor Irrefutável. O venerando mestre o recebeu como um dom do Céu. Dele costumava dizer: “Este é um verdadeiro israelita em quem Adão parece não ter pecado”. Durante três anos Boaventura estudou sob a direção desse grande mestre, e depois o substituiu no ensino.

Dedicava seus momentos livres ao cuidado dos doentes. Quando subia à cátedra para comentar as Sagradas Escrituras ou expor os segredos da teologia, seus ouvintes se perguntavam, cheios de admiração, de onde tinha ele tirado tanta erudição e clareza, pois em nada parecia o religioso dedicado ao cuidado dos doentes.

Desse modo, “Boaventura passou sem interrupção, e com o mais prodigioso resultado, das sinuosidades da filosofia às excelsitudes e profundidades da teologia, rainha das ciências. Logo viu-se apto para resolver com exata precisão as mais intrincadas dificuldades, pelo que ressoaram em sua honra os aplausos e louvores de toda a Universidade. As luzes de seu estudo serviam para fazê-lo avançar com maior rapidez e segurança pelas sendas da virtude e para aproximá-lo mais de Deus”.(2)

Dele diziam que “em sua linguagem não há arrogância, nem ironia, nem espírito de contradição. Procede sempre com circunspeção, fala com suavidade, discute medindo suas palavras e quase pedindo perdão”.(3)

Dois luminares da Igreja se encontram

Por aquele tempo chegou também a Paris o dominicano Tomás de Aquino, para terminar seus estudos, e os dois santos se uniram na mais íntima amizade.

Tendo recebido a ordenação sacerdotal por obediência, Boaventura tremia de santo temor e respeito toda vez que celebrava o Santo Sacrifício. E lamentava: “Como há hoje infelizes padres, descuidados de sua salvação, que comem o corpo de Jesus Cristo no altar como se fosse a carne dos mais vis animais, e que, cobertos e imundos de abominações, não enrubescem de tocar com suas mãos infames, de beijar com seus lábios impuros o Filho de Deus, o Filho único da Virgem Maria! Sim, ouso dizer que se Deus tem por agradável o sacrifício de tais homens, Ele é mentiroso, e se faz companheiro dos pecadores”.(4)

Essa reverência pelo santo sacrifício do Altar levou-o, convencido de sua profunda indignidade, a abster-se de celebrá-lo durante algum tempo. Até que um dia, assistindo à santa Missa enquanto meditava na Paixão de Cristo, uma parte da Hóstia consagrada desprendeu-se das mãos do sacerdote e veio pousar em seus lábios. Compreendeu então que deveria continuar celebrando, e que Deus supriria sua pretensa falta de virtude.
Seus melhores livros: o Crucifixo

Ensinando nas escolas da Ordem, sua fama logo ultrapassou esses estreitos limites. E quando João de la Rochelle deixou em 1254 sua cátedra na Sorbonne, Boaventura foi designado para sucedê-lo com apenas 30 anos de idade.

Certo dia Frei Tomás foi visitá-lo e perguntou em que livros apoiava sua sublime doutrina. Frei Boaventura mostrou-lhe alguns livros, mas, apontando para o Crucifixo sobre sua mesa, disse: “Esta é a fonte de minha doutrina; destas sagradas chagas jorram minhas luzes”.

Tal era a sublimidade dessa doutrina, que lhe garantiu o título de Doutor Seráfico, pois “tinha uma facilidade prodigiosa, uma natureza poética, eloqüência sublime e comunicativa, e aquele anelo que leva a habitar no alto e a olhar o sol face a face. Era um temperamento agostiniano e platônico, no qual havia elevação, variedade, amplidão, engenho, entusiasmo e espontaneidade nos vôos da alma”.(5)

Como Tomás de Aquino, Boaventura granjeou toda a confiança do rei São Luís IX, que o convidava amiúde à sua mesa e o admitia em seus conselhos. A pedido do rei, mitigou as regras das clarissas para as jovens da corte que quisessem consagrar-se a Deus.

Campanha de calúnia. Geral da Ordem

Frei Tomás e Frei Boaventura brilhavam na Universidade (ambos receberam o doutorado no mesmo dia). Isso levou alguns professores, sacerdotes seculares cheios de inveja, a levantar uma campanha difamatória contra as ordens mendicantes. A doutrina aristotélica ensinada por Santo Tomás parecia novidade, e o líder dos descontentes, Guilherme do Santo Amor, saiu em guerra contra as “inovações”. Os franciscanos e dominicanos encarregaram Tomás de Aquino e Boaventura de sua defesa. Um curso ministrado por Boaventura para refutar os erros de Guilherme, além do livro De perfectione evangélica —uma apologia apaixonante do estado de perfeição – conseguiram desmascarar a hipocrisia dos difamadores, ocasionando sua condenação.

No capítulo geral dos franciscanos, reunido em fevereiro de 1257 no convento de Araceli, em Roma, o geral João de Parma demitiu-se, sendo Frei Boaventura eleito por unanimidade para substituí-lo. Durante 18 anos ele exerceu esse cargo com extremos de prudência e sabedoria, procurando fortalecer os bons no seu primitivo fervor pela força do exemplo, com doçura, misericórdia e força, além de impelir os tíbios e relaxados a reafervorarem-se e a observar em toda sua integridade as regras da Ordem.

Deixemos um santo escrever a vida de outro

No capítulo geral da Ordem Franciscana, de outubro de 1257, Frei Boaventura recebeu a incumbência de escrever a biografia de São Francisco de Assis. Para isso foi ao Monte Alverne, onde o Poverello havia recebido os estigmas, a fim de preparar-se para a tarefa pela oração e recolhimento.

Quando voltou a Paris, Frei Tomás foi visitá-lo e encontrou-o de joelhos, elevado no ar, ainda com a pena na mão, e sobre a mesa os papéis em que escrevia a vida do fundador. Cheio de respeito e admiração, o Doutor Angélico disse aos que o acompanhavam: “Deixemos um santo escrever a vida de outro”. Tomás de Aquino se antecipava assim ao juízo da Igreja, reconhecendo a santidade de seu amigo ainda em vida deste.

A devoção de Frei Boaventura pela Virgem Maria foi terna e profunda. Jamais deixava passar ocasião de louvar a digna Mãe de Deus. Todo seu amor reflete-se em sua obra Espelho da Virgem, em que descreve com maestria e unção as graças, virtudes e privilégios de Maria Santíssima. Compôs também em sua honra um Pequeno Ofício que, como diz São Luís Grignion de Montfort, “não se pode ler sem enternecimento”.

São Boaventura convocou um capítulo geral da Ordem, em Assis, para estudar os interesses gerais da Igreja. Nele ordenou aos pregadores franciscanos que pregassem por toda parte a devoção ao Angelus recitado à tarde, para honrar mais especialmente a Santíssima Virgem. Essa prática difundiu-se tão rapidamente pelo mundo cristão, que os Papas a favoreceram depois com inúmeras indulgências. Um dos temas mais importantes desse capítulo foi a cruzada. O geral falou dos sofrimentos da Cristandade, mostrando as calamidades a que a Religião de Jesus Cristo estava exposta. E incentivou seus frades a pregarem com zelo infatigável uma cruzada contra os infiéis.

Exposição do corpo de São Boaventura

Bispo e Cardeal da Santa Igreja

À morte de Clemente IV, em 1268, verificou-se profunda indecisão no colégio cardinalício para a escolha de seu sucessor, de modo que a Igreja ficou acéfala por quase três anos. Foi quando Boaventura procurou os cardeais e levou-os a se inclinarem para a eleição de Teobaldo Visconti, eleito com o nome de Gregório X. Este o nomeou depois bispo de Albano e cardeal da Santa Igreja.

Gregório X convocou em 1274 um concílio na cidade de Lyon (França), para estudar uma forma de união entre a igreja grega e a latina e reformar os costumes. Os dois grandes teólogos, Tomás de Aquino e Boaventura, foram especialmente convocados pelo Papa para esse concílio. O primeiro faleceu a caminho. O segundo, depois de ter brilhado nas primeiras sessões, foi acometido por súbita doença, que o levou ao túmulo no dia 15 de julho desse mesmo ano, aos 53 anos de idade.

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Notas:

1. Les Petits Bollandistes, Vies des Saints, Bloud et Barral, Paris, 1882, tomo VIII, p. 296.

2. Edelvives, El Santo de cada dia, Editorial Luis Vives, Saragoça, 1948, tomo IV, p. 142.

3. Fr. Justo Perez de Urbel, O.S.B., Año Cristiano, Ediciones Fax, Madrid, 1945, tomo III, p. 101.

4. Les Petits Bollandistes, op. cit., p. 302.

5. Fr. Justo Perez de Urbel, O.S.B., op. cit., pp. 101-102.